Na terra indígena mais ameaçada do Brasil, base da Funai é destruída, e ninguém sabe quem cometeu o crime
Um posto de fiscalização da Fundação Nacional do Índio (Funai) dentro da terra Karipuna, em Rondônia, está destruído e virou símbolo da ação de madeireiros e grileiros. O território indígena onde o imóvel foi atacado é o mais ameaçado por queimadas no Brasil – tem o maior número de focos ao redor da terra. Lá praticamente não havia desmatamento até 2014, mas, desde então, mais de 20 km² de floresta foram derrubados.
O imóvel, que deveria ajudar a evitar ataques criminosos, foi construído por uma empresa como ação de compensação ambiental. Entregue em 2016, custou R$ 750 mil, mas quase não foi usado. Os karipuna e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dizem que fiscais chegaram a trabalhar nos primeiros meses daquele ano no posto. Mas os recursos secaram, e o prédio ficou abandonado.
Ainda em 2016 começaram os ataques: o gerador de energia foi o primeiro item furtado. De acordo com os índios, agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) foram os primeiros a ver a destruição do prédio. Foram eles que avisaram a aldeia sobre a situação.
Segundo o indígena Batiti Karipuna, o prédio já havia sido queimado e depredado, mas a vegetação ao redor ainda estava preservada. Com o aumento do desmatamento nos anos de 2017 e 2018, a floresta ao redor também foi reduzida.
Nestes três anos de abandono, as etapas da destruição do posto são desconhecidas pelos indígenas. Em alguns relatos, citam o verão de 2017 como referência. Dos ataques às portas, aos forros e às janelas, nenhuma pista ficou para trás, e os habitantes da aldeia só percebiam rastros nas trilhas. Hoje, os invasores que tentam tomar o território espalham troncos nas estradinhas de terra para evitar o acesso ao que restou da base.
O posto está a 12 quilômetros da aldeia, em um ponto estratégico perto de estradas e de fazendas. No imóvel, os fiscais tinham escritórios e um mirante para observação.
A estrutura foi doada pela Santo Antônio Energia como contrapartida pela construção da usina Santo Antônio, no Rio Madeira, em Porto Velho. A empresa diz que discutiu a localização com o povo e também com a Funai.
Além da sede, o posto tinha casa do gerador de energia, rampa para lavagem de veículos, caixa d’água com poço tubular, redário, garagem com oficina, gerador, mobília e equipamentos.
Em fevereiro de 2018, o Cimi e o Instituto Socioambiental (ISA) denunciaram a depredação do prédio para o Ministério Público Federal. Os promotores dizem que o caso não foi levado à Justiça porque os suspeitos não foram identificados.
O G1 procurou a Funai e o Ministério do Meio Ambiente para comentarem a situação. A Funai disse que buscaria informações, mas não respondeu até a publicação desta reportagem. O ministério não deu retorno.
Ameaça aos karipunas
- Território de 153 mil hectares foi homologado em 1998;
- MPF diz que 11 mil hectares já foram devastados “por intensa atuação criminosa de madeireiros e grileiros”;
- Dos 58 karipunas vivos, 22 frequentam a aldeia;
- Destruição da base da Funai foi denunciada a órgãos públicos pela 1ª vez em fevereiro de 2018;
- Risco de genocídio foi apontado pelo Ministério Público Federal em junho de 2018;
- Em julho de 2018, Justiça Federal determina, em caráter de urgência, a proteção do povo Karipuna;
- Em setembro de 2018, ação coordenada pela PF flagrou propriedades rurais vizinhas armazenando maquinários para desmatamento;
- Em junho de 2019, operação federal cumpriu 4 mandatos de prisão temporária, 5 de preventiva e 15 de busca e apreensão contra invasores.
Karipuna x queimadas
Os karipuna têm o território mais ameaçado do Brasil quando o quesito é o número de focos em um raio de até 5 quilômetros da demarcação. Quando o critério é queimada dentro da área, a terra está entre as 20 com mais queimadas no Brasil.
O território abrange parte de Porto Velho e de Nova Mamoré. No caminho até a aldeia, pasto e gado dominam a paisagem. A floresta aparece só depois da ponte do igarapé Fortaleza, ponto de entrada na terra indígena.
Dentro da área, toras de árvores derrubadas impedem a passagem nos ramais (estradas de terra). Clarões sem vegetação se destacam entre os caminhos e, muitas vezes, o que era floresta já virou carvão. O desmatamento e grilagem ficaram mais intensos a partir de 2016, mesmo ano de criação do prédio da Funai
Desafio de resistir
A presença da fiscalização constante da Funai reforçaria uma luta que hoje é travada por um grupo pequeno. São 58 karipunas vivos, mas apenas 22 frequentam a aldeia.
Entre os 22, pelo menos 10 não estão permanentemente no território: estão casados com brancos, trabalham fora e se articulam para fazer denúncias a órgãos diversos. Poucos homens se revezam em estratégias para proteção dentro da aldeia.
Recentemente, um novo acampamento de invasores foi destruído por Batiti Karipuna. A estrutura foi encontrada a 5 quilômetros da aldeia. O indígena queimou o material e levou o fogão nas costas mata a dentro. Menos de um mês depois, o G1 visitou o local e encontrou os vestígios da tentativa de invasão.
Na terra karipuna, as queimadas são consequência de três fatores: invasões, desmate e grilagem. Mais velho indígena da tribo, com idade estimada pela Funai em 72 anos, Aripã Karipuna diz não ter medo dos madeireiros porque eles desmatam e, depois de um tempo, a floresta volta a crescer. O líder afirma que agora a floresta sofre mais por causa da negociação ilegal de lotes, que deram espaço para o fogo e para o pasto.
Como são poucos, os indígenas karipuna evitam entrar em conflito. De acordo com Eric Karipuna, filho de Batiti e neto de Aripã, a forma de lutar do povo é fazendo denúncias. Adriano Karipuna e André Karipuna, outros líderes do povo, também buscam contato com a Polícia Federal (PF) e o MPF para comunicar invasões.
“Já foi denunciado na ONU, no Ministério Público, na 6ª Câmara, já fomos bater de frente com a bancada ruralista para eles não aprovarem PECs e PLs”, contou Eric.
“Antes, havia invasão, mas não era como hoje, está uma coisa bem devastadora mesmo. Era só retirada de madeira, hoje já são pessoas loteando terras, queimando, fazendo derrubada, e hoje estão ameaçando a gente dizendo que a cabeça dos lideranças estão a prêmio”.
A impressão de Eric de que as invasões estão mais “devastadoras” é confirmada pelos números. O desmatamento passou de 3,6 km² em 2017 para 13,7 km² em 2018, de acordo com os dados do Inpe sobre a terra Karipuna. No caso das queimadas, o número de janeiro até setembro deste ano (66) está próximo do que foi registrado em todo o ano de 2017 (74).
Em setembro de 2018, MPF e PF realizaram a Operação Kuraritinga. A ação teve apoio do Exército, Funai e Polícia Militar Ambiental. De acordo com a PF, propriedades rurais localizadas às margens dos Karipuna ajudavam a armazenar maquinários para a extração ilegal de madeira.
Neste ano, em junho, a operação SOS Karipuna cumpriu quatro mandatos de prisão temporária, cinco de preventiva e 15 de busca e apreensão. O sequestro dos bens dos investigados por atividades ilegais chegou a R$ 46 milhões.
A PF encontrou um grupo que utilizava “uma associação e uma empresa de georreferenciamento para iludir supostos compradores de lotes”. Ou seja: os grileiros vendiam terrenos dentro da terra Karipuna com a promessa de regularização da área.
Preservados, mas sem proteção
Mesmo com as ameaças frequentes às terras indígenas (TIs) e às unidades de conservação (UCs), são elas que concentram a maior quantidade de floresta natural do país.
Em abril deste ano, o G1 Desafio Natureza viajou até a Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, e mostrou que as áreas preservadas brasileiras (TIs e UCs) perderam uma área equivalente a seis cidades de São Paulo em três décadas.
Essas deveriam estar próximas do desmatamento zero, mas o número não se compara à taxa nacional: perdemos 268 áreas da capital paulista no Brasil em floresta.
Para Gilberto Camara, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), existe uma “razão muito simples” para essa diferença:
“Você pode até invadir [terras indígenas e unidades de conservação], mas o Ministério Público vai lá e te pega. A terra em si não vira dinheiro. Você pode tirar as coisas [recursos]. Por isso, temos muito garimpo”, explica o pesquisador.
“São mais preservadas porque você não consegue transformar terra em dinheiro. Se a terra não está ocupada e ainda não é unidade de conservação ou terra indígena, você invade e diz que é seu. Fazer os rolos que o pessoal faz na Amazônia.”
Queimada aumentam nos TIs
As queimadas flagradas pelos satélites estão em alta nos territórios indígenas: estas áreas na Amazônia já registram neste ano o maior número de queimadas desde 2011 e os focos dobraram em relação a 2018, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Rondônia é o quarto estado do Brasil com mais queimadas em 2019. Está atrás de Pará, Mato Grosso e Amazonas. As terras indígenas e unidades de conservação formam um cinturão de norte a sul na parte oeste do estado. Preservam a floresta, mas muitas vezes não são protegidas.
Por Carolina Dantas e Fábio Tito, G1* — Porto Velho
(*Colaboraram Ana Carolina Moreno, Daniele Lira e Diêgo Holanda)
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