‘Quem mora na periferia recebe a maior dose de poluição’, alerta médico especialista em saúde ambiental
Por BBC News Brasil
Há décadas, um dos cientistas mais importantes do Brasil precisa ficar cara a cara com a poluição: seja aquela composta por partículas detectáveis apenas em laboratórios ou aquela que deixa marcas pretas em pulmões de pacientes, uma espécie de “tatuagem” que comprova em necropsias os danos que a contaminação do ar pode fazer à saúde.
Mas Paulo Saldiva, médico patologista e diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), diz que, como paulistano convicto, ciclista e fotógrafo nas horas vagas, até ele ficou surpreso com a tarde da segunda-feira do dia 19 de agosto, que “virou” noite precocemente e exibiu uma cor ocre logo atribuída às queimadas que avançaram pelo país.
“Surpreendeu a todos”, resumiu Saldiva em entrevista à BBC News Brasil no campus da Faculdade de Medicina da USP. “Para mim, foi um Power Point que a natureza colocou para nós: ‘Vocês não acreditam que a fuligem da Amazônia está chegando ao Sudeste? Pode deixar que eu vou fazer uma aula para vocês.'”
O pesquisador aponta que aquele ar esfumaçado tinha “cara de biomassa” e assim foi confirmado por evidências depois. A poluição do ar pode ter várias origens, como a combustão de gasolina e de elementos naturais e orgânicos, a biomassa – como as florestas queimadas cuja fuligem chegou a São Paulo ou a cana-de-açúcar, que no passado envolvia o uso do fogo em seu cultivo e também escurecia o céu paulista.
Aquela segunda-feira foi um alarme que já apita no ambiente acadêmico há muito tempo – Saldiva diz que, após décadas de acúmulo de evidências sobre os malefícios da poluição do ar para o planeta e para a saúde humana, a ciência fez sua parte e chegou a hora da ação.
E é o viés da saúde que, para ele, pode ajudar a convencer aqueles que não são “convertidos” à pauta ambiental.
Afinal, ele e os colegas de várias partes do mundo estimam que, por ano, pelo menos 5 milhões de pessoas morrem prematuramente no mundo por causas relacionadas à poluição do ar.
Cientistas representantes de cinco academias de ciência e medicina pelo mundo se juntaram na redação de uma declaração conjunta apresentada em junho na Organização das Nações Unidas (ONU) reunindo as principais evidências científicas sobre a associação entre a poluição do ar e saúde.
Elas são “inequívocas” e comprovam que a poluição pode prejudicar a saúde “do início ao fim da vida” e danifica “praticamente todos os sistemas do corpo humano” – dos pulmões ao coração, cérebro e pele, diz o documento. A contaminação do ar é uma das principais causas de pneumonia, bronquite e asma em crianças; atrasa o desenvolvimento dos pulmões nelas e em adolescentes; e contribui também para condições que afetam milhões de adultos e idosos no mundo, como câncer, diabetes, doenças cardíacas e acidente vascular cerebral.
Também há indícios crescentes de que a poluição do ar contribui para a demência em adultos e afeta o desenvolvimento do cérebro das crianças.
Produzindo no Brasil, Saldiva – ele mesmo afetado desde cedo por uma das condições mais prejudicadas pela poluição, a asma – acumula centenas de publicações em periódicos renomados internacionalmente e a participação em grupos de pesquisas sobre anatomia, saúde ambiental e antropologia médica. Já estudou com colegas como detectar alterações desde fetos a trabalhadores do trânsito, como taxistas, após a exposição a poluentes.
“A poluição é um fator de risco de saúde que você não tem escolha – o cigarro você escolhe se acende ou não”, aponta, destacando outra dimensão recorrente em sua fala, a desigualdade.
“Onde tem mais carro, tem mais poluição. Mas quem leva o carbono nos pulmões? Quem mora na periferia”.
“É justamente esse pessoal que tem menor condições de controlar doenças cardíacas, a saúde respiratória, diabetes, é quem vai receber a maior dose de poluição.”
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Os paulistanos se surpreenderam com a fumaça na segunda-feira 19, e uma crise internacional começou ali. Foi um sintoma realmente atípico?
Paulo Saldiva – Surpreendeu a todos. Eu mesmo sou paulistano, ando pela cidade fotografando, nunca tinha visto aquilo. Para mim, foi um Power Point que a natureza colocou para nós: vocês não acreditam que a fuligem da Amazônia está chegando ao Sudeste? Pode deixar que eu vou fazer uma aula para vocês.
A transferência de poluição, o fluxo a longa distância, inclusive transcontinental de poluentes, é um fenômeno conhecido há muito tempo.
Se você for ver os mapas de transporte (de poluentes) a longa distância, que o satélite consegue detectar por técnicas de espectroscopia, você vai ver que uma parte dos precursores de ozônio (compostos químicos como metano e monóxido de carbono que, na presença da radiação solar e outros elementos, podem formar o ozônio) sintetizados no Sudeste do Brasil podem chegar à África do Sul; uma parte do chumbo emitido em processos industriais na China chega nas Américas.
Temos (referindo-se a São Paulo) um fluxo com a Amazônia em zigue-zague: a Amazônia manda coisas (poluentes) para nós, e nós exportamos também. Isso já é conhecido há umas duas décadas, graças aos satélites e novas ferramentas.
A bacia aérea é fluida, ela não tem os limites de uma bacia hidrográfica.
Que fumaça de queima de biomassa escurecia o céu, isso já era conhecido, mesmo em São Paulo. A queima da cana-de-açúcar antes da colheita fazia com que houvesse alterações atmosféricas e também doenças. A gente estudou muito isso. Foi um caso bem conhecido de science based policy (política baseada em evidências científicas).
Por sorte – na verdade, azar das pessoas, mas sorte para a política -, eram cidades com uma estrutura de visibilidade e cidadania mais capacitada, no interior de São Paulo.
Você tinha cidades ilhadas por plantações de cana, e o juiz e o promotor público moravam ali.
Eles podiam ver que a fuligem negra caía e as pessoas adoeciam. Ao mesmo tempo, a cidade dependia daquela atividade econômica. Nos anos 1990, isso gerou, depois de um conflito, um protocolo de intenções que levou à progressiva mecanização da colheita da cana. Havia também, além da pressão local, a pressão de importadores (por técnicas menos poluentes).
Chegou-se a um bom termo, a própria indústria se sofisticou.
BBC News Brasil – A fumaça originada em incêndios da Amazônia e esta história da cana-de-açúcar têm em comum, então, a queima de biomassa. O que se sabe sobre esse tipo particular de poluição para a saúde?
Saldiva – Naquela segunda-feira, no fundo, queimou celulose (das árvores). Pesquisadores da química mostraram que aquilo que era visível, que tinha cara de biomassa, também tinha reteno – um hidrocarboneto característico da queima da biomassa. É o DNA, você consegue saber a paternidade da partícula ali.
Já publicamos um trabalho na Scientific Reports mostrando o efeito de poluentes emitidos pela queima de biomassa em marcadores de DNA.
(Saldiva se refere a um estudo do qual foi coautor publicado em 2017 e que mostrou que a exposição a poluentes originados em queimadas na Amazônia, no caso do estudo de amostras coletadas em Porto Velho, causam danos no DNA das células do pulmão.)
Também já comparamos partículas de biomassa com poluentes do tráfego – quer dizer, não é porque é da natureza que esta é menos tóxica.
A gente também estudou biomassa em casas que usam fogão (à lenha) para esquentar ou cozinhar. Você olha a parede e ela está preta; e quanto mais pobre, mais usa – inclusive, agora está crescendo como consequência do aumento do preço do gás, até mesmo em zonas urbanas.
No mundo, são 3,5 milhões de pessoas que morrem anualmente por poluição intradomiciliar por causa disso, mas essas casas não têm voz. Já no caso da cana de açúcar no Estado de São Paulo teve mais visibilidade e suscitou políticas porque caiu na primeira classe do Titanic. Lá, tinha bote salva-vidas para todo mundo.
Poluição é coisa do hemisfério sul, é pobreza.
BBC News Brasil – Como assim?
Saldiva – Primeiro, você precisa gerar informação.
Há publicações mostrando que onde há poluição não tem artigos (científicos); e onde tem artigos, não tem poluição.
Para a poluição, você precisa gerar informação, mas a informação não basta. Por exemplo, eu estou machucado, pois caí de bicicleta. Quando eu desço uma escada, eu tenho todas as informações necessárias para não cair – a partir da minha visão, da experiência, da dor que eu estou sentindo.
Se eu estiver, caindo, eu vou ter que tomar uma decisão sobre qual parte do meu corpo vai ser atingida (na queda). A não ser que o lobby do joelho seja mais forte.
Temos leis dinamarquesas, mas a aplicação depende de princípios e valores.
BBC News Brasil – Quais são os pontos fracos do nosso corpo diante da poluição?
Saldiva – Tudo o que está no cigarro acontece na poluição: câncer de pulmão, derrame cerebral, infarto do miocárdio, doenças respiratórias, internações….
Só que como é muito mais gente exposta (à poluição), o risco atribuível é maior.
E a poluição é um fator de risco de saúde sobre o qual você não tem escolha – o cigarro você escolhe se acende ou não. Na média em São Paulo, (a exposição à poluição) dá quatro cigarros por dia que você não escolhe. Um fumante leve.
E é desigual. Onde tem mais carro, tem mais poluição. Mas quem leva o carbono nos pulmões? Quem mora na periferia. Esse indivíduo fica mais tempo no trânsito, onde as concentrações e a exposição (a poluentes) são maiores.
(O pesquisador mostra à repórter diferentes mapas da cidade de São Paulo: um com manchas de níveis de poluição registradas pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, maiores ao centro do traçado; e outro com a prevalência de câncer de pulmão causado pela poluição, mostrando maior destaque em partes periféricas da cidade. O estudo combinou dados de autópsias, poluentes e trajetos de pacientes.)
BBC News Brasil – Há algo que uma pessoa dessas pode fazer para se prevenir da exposição à poluição?
Saldiva – Não consegue, esse é o problema. Você está na marginal Pinheiros, na marginal Tietê (vias em São Paulo que margeiam rios), olha para o rio e pensa: nossa, que rio poluído. Mas seu risco é zero, porque você não é obrigado a beber aquela água nem tomar banho naquele rio.
Só que você não consegue evitar os canos de escapamento que te circundam.
Uma máscara efetiva tem que ser filtro HEPA (sigla para “High Efficiency Particulate Air”, em tradução livre do inglês algo como “retenção de partículas de alta eficiência”), que é duro, você não consegue respirar muito tempo.
Você pode falar: bom, vou sair em um horário que não tem pico de tráfego. Tudo bem, todo mundo pode? Seu ônibus faz isso?
Você pode falar: pratique caminhada. Que horas, se a pessoa chega em casa depois de trabalhar 14 horas por dia? Tem calçada? Ela pode ser assaltada?
“Coma melhor.” Mas aquele churrasquinho grego com suco de anilina custa muito mais barato do que comer comida boa.
As pessoas vão deixando de ter tempo para se cuidar. Você não precisa mais ter um feitor que te escravize: você já incorporou ele.
E é justamente esse pessoal que tem menor condições de controlar doenças cardíacas, a saúde respiratória, diabetes, é quem vai receber a maior dose de poluição.
BBC News Brasil – O perfil da poluição mudou em São Paulo ao longo do tempo?
Saldiva – A cidade trocou chaminés grandes (das indústrias) por pequenas chaminés móveis, que são os veículos.
O orgulho de São Paulo eram as indústrias, mas toda cidade que vai se sofisticando deixa de produzir bens industriais.
Com a necessidade de isolamento, aumento das restrições ambientais, preço do terreno, as indústrias vão para outras cidades. E dá muito mais dinheiro vender serviço – comércio, lazer, banco…
BBC News Brasil – Por isso você falou anteriormente que a poluição é um problema do hemisfério sul, pois economias avançadas, falando de uma forma geral, fizeram uma transição para serviços?
Saldiva – Tem uma coisa chamada “racismo ambiental”. Certos processos mais sujos, por exemplo reciclar a bateria do seu celular, você acha que isso vai ser feito onde? Ásia e África.
O Brasil está no Euro 6 (padrão da União Europeia para classificar veículos comercializados de acordo com a emissão de poluentes e segundo o qual quanto maior o grau, maior a restrição; a previsão é que o padrão Euro 6 entre em vigor no Brasil em 2023) e exporta Euro 3, que é pior, para América Latina e África.
A mesma empresa multinacional produz tecnologias diferentes conforme o código (de cada país).
BBC News Brasil – O que há de evidências científicas, beirando quase o incontestável, sobre a relação entre poluição e saúde?
Saldiva – Tudo. O número de evidências científicas se avolumou de tal forma que cinco academias se juntaram, inclusive a Academia Brasileira de Ciências (ABC), para apresentar um statement (uma declaração) na ONU (além da ABC, participaram da produção do documento apresentado em junho: Academia de Ciências da África do Sul; Academia Nacional de Ciências da Alemanha Leopoldina; Academia Nacional de Medicina dos EUA; e Academia Nacional de Ciências dos EUA).
Era como dizer: “gente, não precisa saber de mais nada para tomar medidas.” Já se sabe que a adoção delas não só salvam vidas, mas dão lucro.
As informações já temos, o que falta para nós são princípios e valores. Mas esse artigo está em falta no almoxarifado da política. Na política, você tem muito setor de entregas, com as promessas; recursos humanos também está ruim. É isso que está faltando.
BBC News Brasil – Como fazer a pauta ambiental chegar e mobilizar quem já não é “convertido”, inclusive em países como o nosso em que a oportunidade de acesso ao conhecimento é um privilégio?
Saldiva – Se você falar em tomar medidas sustentáveis para, daqui a 80 anos, o primeiro ser vivo beneficiado será o urso polar, e ninguém é convencido. Agora, as pessoas podem (ser convencidas) sabendo que práticas sustentáveis são boas para o planeta mas também agora, na janela de tempo delas – por exemplo, que a diminuição da poluição a nível local melhora a saúde.
Quando você deixa seu carro em casa e reduz a emissão de gases do efeito estufa, diminui também a poluição local. E você, por exemplo, caminha para pegar o transporte público, tendo cobenefícios imediatos, como a redução do risco de osteoporose.
Você comendo menos carne, reduz o risco de uma série de doenças crônicas e degenerativas, como arterioesclerose e câncer do tubo digestivo.
Mas está faltando o conhecimento chegar ao cidadão comum – as universidades, como no Brasil, confundiram autonomia com isolamento.
A parte feliz disso é que as coisas estão melhorando. Pega um jovem hoje: ele quer ter um carro com aquele mesmo ímpeto de 20, 30 anos atrás?
BBC News Brasil – Em alguns recortes socioeconômicos não, mas me pergunto se em outros também…
Saldiva – Eu também não sei, não sei se na periferia o cara não vai querer comprar a motinho dele porque não tem alternativa. Mas e se desse alternativa (de transporte público) para ele?
Se você for ver no Estadão (jornal) o que era legal em um apartamento há 20 anos, os atributos eram: metros quadrados, número de quartos e número de vagas na garagem. Hoje, não.
BBC News Brasil – Tem um provérbio recorrentemente compartilhado por aí que diz: “Só depois da última árvore derrubada, do último peixe morto, o homem irá perceber que o dinheiro não se come”. Você acha que isso vai acontecer mesmo?
Saldiva – Não, eu sou otimista.
A desigualdade no mundo foi criada depois que tivemos a grande revolução cognitiva, criando a linguagem e também aprendemos a plantar e domesticar animais.
Com isso, aumentou a população e foi preciso criar uma hierarquia. Porque isso veio também com uma ansiedade. Ao acumular bens, você começou a se preocupar com o futuro: vai chover ou não? Alguém vai roubar meu rebanho?
Para conversar com mais gente do que aquelas que você põe em uma caverna, faz construções sociais desiguais.
Mas está melhorando porque o conhecimento da desigualdade está maior. Se tivesse Instagram, não tinha Hiroshima e Nagasaki (cidades japonesas bombardeadas com armas nucleares pelos EUA na Segunda Guerra Mundial) – a visão desses lugares destruídos seria intolerável, assim como a menina com Napalm (Kim Phuc, que apareceu em foto com o corpo queimado depois de um ataque com napalm no Vietnã nos anos 70) ou o menino na frente do tanque (manifestante fotografado bloqueando a passagem de tanques após massacre na Praça da Paz Celestial, na China, em 1989).
Bolsonaro está voltando (recuando) não porque tenha mudado de opinião, mas porque a imagem da Amazônia queimando chegou no mundo inteiro e criou um superego, um sistema de controle, mais eficiente.
Os agricultores sabem que, se queimar (a floresta), não vão conseguir vender.
BBC News Brasil – Mas não é limitado o alcance dessas pautas (ambientais)? Por exemplo, de vez em quando há escândalos como esse, mas o lixo eletrônico continua sendo produzido…
Saldiva – Não tenha dúvidas de que isso reduziu. Hoje seria impossível a Inglaterra fazer uma guerra do ópio contra a China. Impossível, impossível.
Se você analisar em uma escala de tempo maior, existe uma menor capacidade de executar perversidades.
Mas é preciso uma mudança cultural – na própria ciência, às vezes é preciso morrer um população para que novas ideias venham. Na política, vai acontecer a mesma coisa.
O cérebro humano consome muita energia, e como a cabeça não pode nascer muito grande (para viabilizar o parto), você precisa maturá-lo por anos. Isso envolve empatia, solidariedade, toda uma organização social.
Nós fomos programados para isso.
BBC News Brasil – Para o quê?
Saldiva – Colaboração. Nós (a espécie humana) apostamos nessa cabeça, e ela vai nos dar soluções – como trouxe.
Eu já vi mais gente melhorar em UTI do que em igrejas. Depois que o cara passa na UTI, ele vai refletir – e nós estamos na UTI agora.
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