Desmatada e aquecida, Amazônia perde até 50% da capacidade de reciclar água
Carlos Madeiro
Colaboração para o UOL, em Maceió
O desmatamento e a degradação ambiental causaram mudanças climáticas que levaram a Amazônia a um aquecimento médio nos últimos anos que fizeram a floresta perder até metade da capacidade de reciclar água. Esse é apenas um dos problemas e preocupações dos cientistas apontados no relatório “Mudanças Climáticas: Impactos e Cenários para a Amazônia”, produzido por órgãos de pesquisa com base em dados do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), vinculado à ONU (Organização das Nações Unidas).
Segundo o estudo, a influência humana é mais decisiva do que causas naturais nas mudanças sentidas na Amazônia. “Devido ao desmatamento atual, que já cobre quase 20% da Amazônia brasileira, e a degradação florestal que pode estar afetando uma área muito maior, a Amazônia já perdeu de 40% a 50% da sua capacidade de bombear e reciclar a água”, afirma o estudo.
O trabalho é assinado pelos pesquisadores José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), e Carlos Souza Júnior, do Imazon. “É como se o coração de uma pessoa tivesse a metade de suas células mortas ou doentes e, portanto, não conseguisse mais impulsar o sangue pelo corpo todo. As partes do corpo que não recebem sangue ou que recebem menos ou mais lentamente morrem. Isso é o que aguarda os pampas úmidos argentinos e as terras atualmente mais produtivas do Sudeste e do Centro-Oeste do Brasil, além da Bacia do Prata”, completa.
Temperatura aumenta Segundo os dados coletados na Amazônia, entre 1949 e 2017 houve um aumento médio na temperatura entre 0,6 ºC a 0,7 ºC. “O ano de 2017 [foi] o mais quente desde meados do século 20.” Pós-doutor em modelagem climática pela Nasa (a agência espacial norte-americana) e pela Universidade Columbia, José Marengo explica que o aumento médio apontado pode até parecer pequeno para um leigo, mas já é suficiente para causar impactos. “Vemos o que aconteceu no fenômeno El Niño, com muita seca em 2016 e grande concentração de queimadas”, conta.
Naquele ano, a região Norte sofreu com uma das maiores secas de sua história recente. O rio Acre, por exemplo, atingiu seu menor nível desde que começaram as medições, em 1970. Várias cidades decretaram emergência. “Talvez a população se adapte, ligando um ar-condicionado, se refrescando mais com a água. Mas a vegetação não consegue: ela morre e queima. Boa parte do material que agora está queimando pode ter sido material que não queimou em 2016”, explica Marengo.
Somente em agosto, as queimadas na Amazônia atingiram uma área equivalente a 4,2 milhões de campos de futebol, o maior valor para o mês desde 2010. Os municípios mais desmatados são aqueles que registram maior número de focos de incêndio. Marengo diz que as queimadas na Amazônia contribuem para aumentar da emissão e concentração de CO2 na atmosfera —o que leva ao aquecimento global. “Todas as medidas propostas pelo Acordo de Paris visam reduzir a emissão do CO2. A vegetação que queima aumenta a concentração de gases para o efeito estufa. Um detalhe é que, neste ano, as queimadas não têm a ver com motivos ambientais”, diz.
Previsão de caos
Se o aquecimento seguir a tendência atual —sem uma ação para conter o desmatamento, as queimadas e a degradação—, a situação da Amazônia tende a se agravar a níveis críticos até o fim deste século. “A previsão dos modelos climáticos para a Amazônia apresentados pelo IPCC apontam para um aumento na temperatura média do ar projetado até o final do século 21 bem acima de 4º C e redução nas chuvas de até 40% na Amazônia. Essa mudança na temperatura do ar tem potencial para gerar grandes desequilíbrios em ecossistemas vitais para a sobrevivência da humanidade”, afirma.
José Marengo faz um alerta preocupante caso a temperatura tenha essa alta. “Acima dos 4º C, segundo os modelos que temos, a floresta pode colapsar. Significaria que o volume de CO2 que a floresta absorve hoje seria liberado para o ar. Basicamente, chegaríamos a um ponto de não retorno, e não só a floresta, mas outros sistemas poderiam colapsar. Haveria alterações no ciclo hidrológico global e haveria a possibilidade de extinção das espécies”, diz. “Seria um caos, um mundo diferente, com todo o sistema muito afetado. Os recursos naturais também estariam bem comprometidos. Teríamos doenças, queda na qualidade da água, dos alimentos”, explica.
Em agosto, relatório do IPCC fez um alerta citando que a produção de alimentos está ameaçada pelo aquecimento da Terra e pela redução de áreas cultiváveis. Uma das preocupações principais é que hoje a área desmatada chega 1 milhão de km², —apenas 15% dessa área (150 mil km²) está em recuperação. Caso isso avance, o regime de chuvas em outras regiões será afetado. “Modelos indicam que as secas no Sudeste ficarão mais intensas a partir de 40% de desmatamento na Amazônia”, alerta o estudo.
Informação semelhante foi dada pelo meteorologista Humberto Barbosa, primeiro cientista brasileiro a chefiar um capítulo de relatório do IPCC. Ele alertou em entrevista ao UOL que degradação ambiental é responsável por intensificar o aquecimento global e que o desmatamento da Amazônia afeta diretamente o ciclo de chuvas do Sudeste. Ele ainda lembrou da crise hídrica de São Paulo, em 2013, causada pela redução inesperada das chuvas na região.
Segundo o pesquisador, a floresta ajuda a evaporar água, assim como a umidade dos oceanos. “Se o cenário de aquecimento continuar, poderíamos ter chuvas mais intensas em muitas áreas e seca muito extrema em outros pontos; ou os rios a terem níveis baixíssimos, assim como lagos e oceanos. A floresta faz parte do clima”, completa Marengo,
Ciência alerta
Para Marengo, a ciência brasileira está estudando e alertando sobre o problema já há algum tempo, assim como indicando caminhos para evitar o pior cenário.
“A ciência brasileira está fornecendo todos os conhecimentos científicos necessários para o governo tomar decisões. A prevenção é importante. E não só com informações nossas [do Cemaden], mas de outros centros de pesquisa. As evidências científicas estão aí. Esperamos que o governo se sensibilize”, diz. Segundo ele, dados produzidos no Brasil, como os do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), sobre o número de queimadas e desmatamento são fundamentais para ajudar na política pública de prevenção de mudanças ambientais severas.
“O Inpe faz isso há mais de 30 anos, mas não só ele: a comunidade científica também publica revistas científicas, faz relatórios. Tudo isso produzimos. É o que nos compete, como cientistas, fazer. Ao governo cabe tomar a frente nas questões de prevenção, fiscalização, controle e criar as leis”, afirma.
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