Cegueira e corrosão da pele: regras de agrotóxicos aumentam riscos para agricultor
As novas regras anunciadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre classificação de agrotóxicos parecem, à primeira vista, apenas uma adaptação ao padrão internacional.
Mas, na prática, especialistas e defensores dos direitos dos trabalhadores rurais afirmam que a medida vai colocar sob risco ainda maior a saúde de quem lida diretamente com a aplicação dos pesticidas. Isso porque a principal alteração do Marco Regulatório acontece na hora de classificar os produtos mais perigosos, ou seja, das classes “altamente tóxicos” e “extremamente tóxicos”. Se antes os que causavam problemas como úlceras, corrosão dérmica e na córnea e até cegueira entravam nessas categorias, agora só vão fazer parte delas os que apresentarem risco de morte por ingestão ou contato.
Assim, mais de 500 dos 800 produtos agrotóxicos hoje considerados altamente tóxicos vão passar para as classes menos perigosas, o que deve aumentar a produção e o consumo desse tipo de pesticida. Além disso, eles terão menos alertas no rótulo, ou seja, perdem a tarja vermelha e a caveira que chamava atenção sobre o risco mesmo para agricultores de baixa escolaridade.
Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que ambas mudanças – na reclassificação das categorias e na rotulagem – são um passo atrás para a proteção da população em geral e, especialmente, dos agricultores.
“Quando o limite é a morte, você rebaixa muito a discussão. Precisamos destacar outros perigos além do óbito e colocar como consideráveis os efeitos nos olhos e na pele. Ficar cego ou ter a pele corroída também são limites altíssimos”, afirma Larissa Mies Bombardi, professora da Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo e autora do Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.
Rótulos mais claros?
As alterações no rótulo
foram realizadas para se adaptar parcialmente a um padrão internacional
chamado GHS – Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e
Rotulagem de Produtos Químicos (Globally Harmonized System of
Classification and Labelling of Chemicals, no original em inglês).
Segundo informou o diretor da Anvisa, Renato Porto, em uma entrevista
coletiva, a mudança vai simplificar a compreensão de quem “manipula,
mistura, utiliza um componente e precisa ler um rótulo, uma instrução de
uso”.
Atualmente há quatro categorias: Extremamente Tóxico (rótulo vermelho), Altamente Tóxico (rótulo vermelho), Medianamente Tóxico (rótulo amarelo) e Pouco Tóxico (rótulo azul). Agora, a partir do GHS, mais duas novas categorias foram criadas: Improvável de Causar Dano Agudo (rótulo azul) e Não Classificado (rótulo verde), sendo o último válido para produtos de baixíssimo potencial de dano, como produtos de origem biológica. A indústria dos agrotóxicos terá um ano para se adequar às novas regras.
Mas mudanças na embalagem como substituir a tarja vermelha e o símbolo da caveira de agrotóxicos que podem causar lesões severas no olho e na pele por tarjas amarelas e símbolo de atenção foram criticadas pelos especialistas
“Se o rótulo cumpre o papel de comunicação visual que ele promete, quando você substitui a etiqueta vermelha pela azul, você diz para o trabalhador que aquele produto não é mais tão perigoso”, opina Bombardi. O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, vice-presidente da regional sul da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e membro da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, concorda que as mudanças podem deixar o agricultor mais suscetível a descuidos com produtos que não matam, mas podem causar invalidez e prejudicar o agricultor e toda sua família.
“Essa alteração pode levar ao entendimento de que aquele produto não é mais tão perigoso e exige menos cuidado ao manuseá-lo, o que não é verdade”, afirma Melgarejo. “E vale lembrar que esses produtos muitas vezes são deixados em casa. Agora, sem a caveira que gerava temor nas crianças, elas também correm risco maior. E isso também pode complicar a compreensão de quem tem dificuldade com a leitura.”
Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde confirmam o temor do engenheiro agrônomo. O grau de escolaridade médio das cerca de 40 mil pessoas atendidas no sistema de saúde brasileiro entre 2007 e 2017 após serem expostas à agrotóxicos era de Ensino Fundamental incompleto. Desse total de casos, 26 mil tiveram intoxicação confirmada e 1.824 acabaram morrendo.
O pesquisador da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luiz Cláudio Meirelles, que é ex-gerente geral da Anvisa, concorda que a alteração na rotulagem dos produtos pode gerar ruído no entendimento do agricultor. “Fazer essa harmonização internacional acaba deixando de lado as características do agricultor brasileiro. Temos no país tecnologia de ponta, mas também há uma grande parte do setor representado pela agricultura familiar onde o produtor que vai manusear o agrotóxico tem baixa escolaridade.”
‘Perigo camuflado’
O novo marco regulatório
também não foi bem recebido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (Contag), que repudiou a reclassificação da toxicidade.
“Essa decisão camufla o real perigo que essas substâncias oferecem à
sociedade, principalmente ao prejudicar a saúde dos trabalhadores que
aplicam os agrotóxicos”, afirmou Rosmari Malheiros, secretária de Meio
Ambiente da Contag.
Para se ter uma ideia, de 2000 a 2008, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), contabilizou 363 casos de pessoas que foram vítimas em conflitos no campo envolvendo pesticidas – em situações como trabalhadores sendo intoxicados ou lideranças rurais perseguidas ou mortas por denunciar o problema.
Especialistas apontam ainda que a nova regra da Anvisa pode agravar esse cenário também no sentido aumentar ainda mais o ritmo de aprovação de novos produtos agrotóxicos – foram 290 neste ano.
“A aprovação de produtos classificados como de maior toxicidade tende a ser mais demorada. Requer apresentação de mais estudos pela indústria, precisam ser estipulados limites máximos de uso e formas de aplicação. E agora, com as novas regras, cada vez menos produtos terão essa classificação máxima, e assim passaram por um processo de aprovação que é mais rápido”, explica Marina Lacôrte, coordenadora da Campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace.
Segundo a legislação, é proibido registrar um agrotóxico cuja ação tóxica seja maior do que de um produto similar já registrado. Com a diminuição nos parâmetros que classificam a toxicidade, mais agrotóxicos estarão aptos a serem registrados. “Antes, se o produto causava cegueira, ele recebia a classificação máxima. Agora, ele vai ser colocado na classe de medianamente tóxico, o que o permitirá que mais agrotóxicos como aquele possam chegar ao mercado”, explica o agrônomo Melgarejo.
As alterações propostas pela Anvisa foram bem recebidos pela indústria de pesticidas. A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef) destacou que é importante que o país avance na modernização dos regulamentos acompanhando os avanços científicos e garantindo a segurança dos trabalhadores e consumidores. Já o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) disse que as mudanças “trazem mais segurança aos produtores que manuseiam os produtos na medida em que as mudanças nos rótulos facilitam a identificação de riscos e deixam a comunicação mais fácil e acessível”.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.
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