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Fazendas de camarão colocam em risco manguezais da Amazônia e meio ambiente

Muito provavelmente você não lembra de nenhuma praia paradisíaca entre o litoral do Pará e o do Maranhão. Não se culpe: os 670 quilômetros de costa entre os dois Estados formam o maior cinturão contínuo de manguezais do mundo. Esse ecossistema pode não ter tanto apelo turístico, mas é fundamental para o meio ambiente marinho e terrestre do mundo, assim como para a cultura e o sustento das populações locais.

O problema é que o bioma está ameaçado desde que o atual governo federal revogou em setembro a resolução que protegia as áreas de mangue, restinga e dunas. Agora, pode acontecer por lá o que ocorreu nos manguezais do Ceará e Rio Grande do Norte: serem devastados para dar lugar a fazendas de camarões.

“O mangue não é só o berçário de milhares de espécies, como a maioria aprendeu na escola. É também um filtro muito eficiente de gás carbônico, diminuindo o efeito estufa do planeta. Cada hectare no manguezal armazena 50% a mais de carbono que na floresta amazônica e oito vezes mais que na caatinga”, afirma o especialista em mangues Angelo Bernardino, professor da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) que esteve à frente do estudo que constatou esses dados.

Segundo a mesma pesquisa, cortar a vegetação do mangue libera 70% a mais de carbono do que na floresta amazônica. Então, não parece uma boa ideia mexer com ele. Porém, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, parece não pensar assim e preferir atender os interesses dos carcinicultores, os donos das fazendas de camarão. A revogação foi contestada na Justiça, mas o governo conseguiu suspender a liminar. Depois disso, parlamentares entraram com ação no STF (Supremo Tribunal Federal).

Não é a primeira vez que a criação de camarão vai parar na Justiça. Em 2008, uma operação da Polícia Federal constatou laudos e licenças fraudulentas no Ceará. Um estudo encomendado por associação de criadores chegou a afirmar que as fazendas até aumentavam as áreas de mangue – seu autor, um geólogo, acabou condenado pela fraude.

A notícia do impacto ambiental derrubou as exportações desses crustáceos para Europa e EUA, países que monitoram esse tipo de atividade devastadora. Daí, a produção nacional foi voltada para o consumo interno – os principais compradores são os bares e restaurantes, que fechados no início da quarentena, obrigaram os criadores a tentar vender para os países asiáticos, que têm menos restrições quanto ao lastro destruidor desse produto.

Criação de camarão na bacia Hidrográfica Piranhas-Açu no Rio Grande do Norte - Avener Prado/Folhapress - Avener Prado/Folhapress
Criação de camarão no Rio Grande do Norte Imagem: Avener Prado/Folhapress

Mangue tem muitas utilidades

Em sua pesquisa de campo, Bernardino constatou como a criação desregulada de camarão funciona. “Tem tanques próximos a cidades e saídas de esgoto e lixões. O aspecto sanitário é muito ruim, e não vimos fiscalização. Além disso, os criadores despejam muito antibiótico e ração na água, que vão parar na natureza”, relata o pesquisador.

Em geral, a carcinicultura utiliza uma área chamada apicum, com menos vegetação e mais plana, que fica atrás do mangue e faz parte do ecossistema, para fazer tanques de criação que aproveitam as marés para a renovação de suas águas intersalinas (mistura de água de rio com a do mar). O cálculo é que, fora os quase intocados mangues da Amazônia, 35% dos apicuns do Brasil estão ocupados por essas fazendas, principalmente no Nordeste (os maiores produtores são Ceará e Rio Grande do Norte).

Além de local de desova e lar de filhotes de peixes e refúgio para aves, os mangues também têm a função de filtrar os resíduos dos rios antes deles desembocarem no Oceano, principalmente os efluentes orgânicos que as cidades despejam. Segundo Bernardino, isso é especialmente visto em cidades como Vitória, Recife, Santos e Rio de Janeiro.

“Os mangues também ajudam a reduzir o impacto da subida do nível do mar pelo aquecimento global, porque lá se depositam os sedimentos, as raízes e a vegetação crescem e vão formando barreiras naturais. Países que devastaram seus mangues agora têm de gastar com caras obras de engenharia para dar conta do papel que os mangues fazem naturalmente”, relata o pesquisador. Cientistas calcularam que o tsunami de 2004 no Oceano Índico, que matou mais de 220 mil pessoas, teria um impacto bem menor se os manguezais não tivessem sido cortados em diversos países.

O carbono azul

Por seu papel no “sequestro” de carbono dos oceanos e da atmosfera, os mangues são uma verdadeira poupança ecológica dos países onde eles estão. Daí, surgiu o conceito de “carbono azul”, ou seja, criados pelos ambientes costeiros. Alguns países, como o Equador e a Indonésia, já contabilizam essa maior eficiência em seus mercados de carbono.

Com exemplos que vão do Amapá até Santa Catarina, o Brasil é o segundo colocado em área de manguezal do mundo, só perdendo justamente para a Indonésia, que já devastou bastante esses ambientes, mas hoje está em processo de recuperação deles.

A revogação assinada por Salles pode ser considerada um retrocesso de cinco séculos em relação à proteção a esse ecossistema. Isso porque desde 1577, por regimento da coroa portuguesa, os mangues brasileiros tinham a condição de protegidos. Em 1664 e 1678 também foram criadas leis de proteção. Antigamente, a preocupação não era ambiental: o tanino era extraído de árvores dos mangues, e os colonizadores não queriam ficar sem a substância importante no tratamento do couro.

O atual governo federal argumenta que o Código Florestal já protege os mangues, mas ele não está ainda totalmente regulamentado – o que a anulada resolução número 303 fazia, deixando um vazio jurídico que facilita a ocupação não só pela carcinicultura, mas também por parte de empreendimentos imobiliários, turísticos, extração de sal, pastos e plantações.

Os manguezais da Amazônia representam 70% desse bioma no Brasil, totalizando 9.000 quilômetros quadrados de área. Por lá, as plantas são maiores, chegando a 30 metros de altura, por conta do calor intenso, pela maior amplitude das marés, pela costa entrecortada e pelas ondas suaves.

“Os mangues precisam ser mais conhecidos e preservados. As pessoas têm aquela imagem da paisagem cheia de lama e cheiro forte. Isso acontece justamente pelo acúmulo de material orgânico. Mas é muito enriquecedor conhecer esse ecossistema, sua fauna e as populações que vivem nele”, aponta Bernardino, que é também explorador da National Geographic.

Por UOL

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