Pássaros desaparecem de área intacta da Amazônia, e resposta do enigma pode estar fora da floresta
Em tese, regiões intocadas e longe de interferências humanas numa floresta tropical não vêm à cabeça como local onde se esperaria encontrar declínio de populações de espécies de aves ou de quaisquer animais.
Mas foi justamente isso que um estudo de longo prazo — mais de 35 anos —, realizado por pesquisadores americanos, constatou em áreas não perturbadas da Amazônia.
Eles verificaram que pássaros que se alimentam de insetos no solo e outros que vivem nas partes baixas da mata estão desaparecendo dessas áreas. E sugerem que o fenômeno esteja sendo causado pelas mudanças climáticas.
O estudo faz parte do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), criado pelo biólogo e ambientalista americano Thomas Lovejoy, em 1979, e que atua desde então numa área de mata intocada, 80 km ao norte de Manaus.
Entre 2008 e 2016, o biólogo Philip Stouffer, do Departamento de Recursos Naturais da Universidade Estadual de Louisiana (LSU, na sigla em inglês), liderou um grupo que repetiu o trabalho que havia sido feito entre 1980 e 1984 por seu conterrâneo, o zoólogo Rob Bierregaard, que dirigiu o projeto nos oito primeiros anos de sua existência.
Em entrevista à BBC News Brasil, Stouffer contou que o objetivo do seu trabalho era capturar uma amostra adequada de espécies de pássaros, na mesma área que Bierregaard coletou, para comparar a abundância delas com os dados de 1980-1984.
“Reparamos que por volta 2008 os insetívoros terrestres ficaram mais difíceis de encontrar do que na época do estudo anterior”, explica.
“Resolvemos, então, testar a hipótese. Levamos anos — até 2016 — para acumular dados de 21 sítios, numa faixa de 40 km de floresta, para comparar com os 34 dos anos 1980.”
“Usamos linhas de redes de neblina (redes especiais utilizadas na captura de aves e morcegos para fins científicos, quase invisíveis para os animais) de 200 metros de largura por 2,5 metros de altura, para capturar pássaros passivamente — sem isca ou algo para atraí-los”, conta Stouffer.
“Assim é fácil padronizar o esforço e não há problemas de identificação com as aves na mão. Observamos que um grupo que usa o chão ou a vegetação mais baixa tem abundância reduzida, comparada com os dados da mesma floresta em 1980-1984.”
Segundo Stouffer, a conclusão mais importante da pesquisa, “e péssima para a biodiversidade”, é que as aves especializadas em se alimentar no chão estão menos comum do que eram.
“(O pior) é que isso está ocorrendo sem perturbação da paisagem, como, por exemplo, fogo, fragmentação da floresta ou espécies invasivas, que são as ameaças típicas”, diz.
Em números, o trabalho mostra que das 79 espécies capturadas e estudadas, 52 mostraram declínio de suas populações; 24, aumento; e três se mantiveram estáveis.
“Entre as que tiveram a maior redução do número de indivíduos está a choquinha-de-barriga-ruiva (Isleria guttata), que havia sido registrada em 59% dos sítios pesquisados em 1980-1984 e agora só foi encontrada em 14% dos locais estudados”, revela o biólogo Cameron Rutt, hoje pesquisador de pós-doutorado na George Mason University, que foi aluno de Stouffer e participou do estudo quando estava na LSU.
Na lista também está o vira-folha-pardo (Sclerurus caudacutus), de 53% para 10%; o uirapuru-verdadeiro (Cyphorhinus arada), de 59% para 29%; o uirapuru-de-asa-branca (Microcerculus bambla), de 50% para 19%; o pinto-do-mato-carijó (Myrmornis torquata), de 47% para 19%: “Na verdade, mesmo que tenha passado um ano e meio fazendo pesquisas de campo na área, nunca vi o vira-folha-pardo”, conta Rutt.
“Apesar dessas aves específicas, que registraram grande declínio, quando são considerados somente os resultados estatisticamente relevantes, das 79 estudadas, apenas 17 sofreram alterações, 9 em declínio e 8 com aumento”, explica Rutt.
O que faz a descoberta do novo estudo ser impactante e preocupante é o local onde ela foi feita: uma área de mata intocada.
O pesquisador Mario Cohn-Haft, do Departamento de Biodiversidade (COBIO) e Coleções Zoológicas – Aves, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica por quê.
“Se fossem mudanças simplesmente aleatórias, era de se esperar essa variação, algumas espécies em declínio e outras em ascensão”, diz.
“O que faz a diferença é que os pesquisadores descobriram que ocorreu o que se esperaria que acontecesse em áreas de degradação florestal.”
De acordo com ele, as espécies que diminuíram são as mesmas que teriam queda em áreas alteradas. E as que aumentaram são as aquelas que se beneficiariam com a destruição da floresta, porque são oportunistas e têm melhor capacidade de adaptação às mudanças ambientais.
“Isso é uma forte evidência de que a mudança no tempo é no mesmo sentido daquela quando há degradação e fragmentação da mata”, explica.
“Enquanto as que aumentaram são as que se beneficiam da abertura da mata, aumento da temperatura e da luz. Geralmente são os pássaros que comem frutas. Isso sugere que as condições da floresta não estão sendo tão estáveis como se imagina, que ela está se degradando de alguma forma, com mudanças do microclima em seu interior. O que fortalece a ideia de que as mudanças macroclimáticas, ou seja, globais, que vão no sentido de esquentar e secar, estão influenciando profundamente o interior da floresta da amazônica.”
“Nesse trabalho, descrevemos o padrão de declínios e aumentos, mas nós ainda não sabemos qual pode ser a causa dessas reduções”, admite Rutt.
“Mas, nesse momento, nossa suposição é que o que estamos vendo está ligado a eventos causados pelas mudanças climáticas globais. O mecanismo pode ser uma mudança nas populações de insetos, que vivem no solo (que os pássaros comem), uma mudança na estrutura da mata mesmo, ou algo mais. É claro que mais pesquisas são necessárias para entender por que essas perdas invisíveis estão acontecendo na maior floresta tropical do mundo.”
Por G1
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