Desmatamento dispara no Xingu, um dos últimos ‘escudos’ da Amazônia
Por João Fellet, BBC
O desmatamento em unidades de conservação na bacia do rio Xingu, nos estados do Pará e Mato Grosso, cresceu 44,7% em maio e junho de 2019 em comparação com o mesmo período do ano anterior, reforçando a tendência de alta no desflorestamento da Amazônia e ampliando as pressões sobre um dos principais corredores ecológicos do bioma.
Os dados são do Sirad X, boletim publicado a cada dois meses pela Rede Xingu+, que agrega 24 organizações ambientalistas e indígenas. Além de compilar imagens de satélite, o sistema usa radares que permitem detectar o desmatamento mesmo em períodos chuvosos do ano.
O boletim diz que, entre janeiro e junho deste ano, a região perdeu 68.973 hectares de floresta – área equivalente à cidade de Salvador. A bacia do Xingu abriga 26 povos indígenas e centenas de comunidades ribeirinhas, que dependem do bom funcionamento dos ecossistemas locais para sobreviver. A região tem tamanho comparável ao do Rio Grande do Sul.
Como mais da metade da bacia é composta por áreas protegidas, ela também serve como uma espécie de escudo da Amazônia em sua porção oriental, dificultando o avanço do agronegócio pela floresta. E ela é uma das últimas áreas do bioma amazônico em contato com o Cerrado, o que lhe confere papel central em estudos sobre biodiversidade.
Quando se compara o desmatamento de maio e junho no Xingu com o do bimestre anterior, o aumento foi de 81% para toda a bacia e de 405% para unidades de conservação.
Política ambiental de Bolsonaro
É normal que o índice de destruição cresça no meio do ano, quando o clima mais seco facilita as derrubadas, mas o tamanho do aumento foi considerado alarmante pelos autores do estudo.
Para eles, o crescimento se explica por ações do governo Jair Bolsonaro que fragilizaram o combate a crimes ambientais e por declarações do próprio presidente que estariam encorajando atividades ilícitas, especialmente o garimpo.
Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, têm pregado uma mudança na política ambiental que reduza a ênfase em punições e considere o impacto econômico de atividades nocivas à natureza.
“O que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos de uma política pública da produção de leis, regras, de regulamentos que nem sempre guardam relação com o mundo real”, disse Salles numa reunião com madeireiros em Rondônia, em julho.
Há duas semanas, a BBC News Brasil publicou uma reportagem sobre o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas da Amazônia em 2019. Uma das áreas mais impactadas pela atividade fica na bacia do Xingu, a Terra Indígena Kayapó.
Bolsonaro defende liberar a mineração em terras indígenas e costuma dizer que “o índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”. A medida depende de aval do Congresso.
Várias das principais associações indígenas brasileiras são contrárias à atividade, temendo seus impactos sociais e ambientais.
Segundo os autores do Sirad X, “o garimpo tem se destacado como o principal vetor do desmatamento” em áreas protegidas do Xingu.
Quem desmatou mais
Altamira (PA), onde fica a hidrelétrica de Belo Monte, foi o município da bacia que mais desmatou, com 18 mil hectares de floresta destruídos em maio e junho.
O Pará foi responsável por 82% do desmatamento ocorrido na bacia no bimestre, enquanto o Mato Grosso respondeu por 18%.
A unidade de conservação mais impactada foi a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, no Pará, palco de 38% de todo o desmatamento ocorrido na bacia em maio e junho.
Segundo o boletim, a reserva já perdeu 36% de suas florestas, o que os autores atribuem à “ausência de zoneamento que defina as áreas destinadas à conservação” e à “falta de operações de fiscalização e monitoramento ambiental in loco”.
A BBC questionou o Ibama e o ICMBio sobre o aumento nos índices de desmatamento no Xingu e sobre as críticas à postura do governo quanto a crimes ambientais. Não houve respostas.
Questionada em 23 de julho sobre o aumento do garimpo em terras indígenas, a Funai respondeu oito dias depois. Em nota, o órgão diz ter apoiado 444 ações preventivas ou de fiscalização em 241 terras indígenas entre janeiro e julho de 2019 – e que tem buscado ampliar suas parcerias com órgãos ambientais e policiais estaduais.
“Para tal, está sendo realizado um conjunto de reuniões junto ao Ibama, à Polícia Federal, às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, entre outros. Tais esforços já foram realizados nos Estados de Rondônia, Roraima, Pará e Mato Grosso”, diz a Funai.
Importância para zoologia
Para Miguel Trefaut Rodrigues, professor de zoologia da USP e um dos maiores especialistas em répteis e anfíbios do mundo, a bacia do Xingu tem uma importância central nos estudos sobre a dispersão e diferenciação de espécies que habitam as florestas brasileiras.
Isso porque a região engloba alguns dos últimos trechos preservados onde o bioma amazônico se encontra com o Cerrado – áreas que no passado provavelmente serviram como corredores para espécies que se deslocavam entre a Mata Atlântica e a Amazônia, tornando-as ambientes megadiversos.
Trefaut diz que entender como se deu esse deslocamento é um dos maiores desafios da zoologia moderna – mas que os estudos, ainda incipientes, dependem da preservação da mata.
“Derrubar essa área vai acabar com os resquícios e evidências de contato (entre a Amazônia e a Mata Atlântica) que houve no passado”, ele afirma à BBC.
O zoólogo diz ainda que, quando um trecho da floresta é desmatado, há um impacto irreversível para a fauna daquele ponto, pois a grande maioria das espécies não tolera as temperaturas mais altas de ambientes sem cobertura vegetal.
“A fauna vai embora: desaparecem todos os roedores, lagartos, sapos, cobras e a maior parte das aves. Um ou dois bichinhos podem tolerar ambientes abertos, mas a maior parte dos bichos amazônicos some para sempre.”
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